Chegamos a mais um fim de ano e, como todo dezembro, é hora de encarar o futuro sem nostalgia. Desde minha tese doutoral, lá em 2016, venho destacando as fissuras no tripé clube-patrocinador-torcedor. Nos últimos dois anos, essas fissuras se tornaram rupturas. E, a partir de 2026, o conceito de “torcedor” como o conhecemos sofrerá uma ruptura irreversível.
Por isso, o esporte brasileiro precisa se preparar antes que o impacto bata com força.
Por décadas, os clubes se apoiaram em um mito confortável: o torcedor como patrimônio vitalício, o sócio que paga por devoção, a camisa comprada como ritual anual, a arquibancada como símbolo de identidade. Esse modelo, sustentado por lealdade herdada e arraigada, está perdendo base. E não se trata de opinião. Trata-se de dados.
O Brasil consolidou-se como o segundo maior mercado em número de visitantes únicos na categoria de esportes no ambiente digital. Já somos 59 milhões de usuários, segundo o relatório “O Esporte no Ambiente Digital”, divulgado pela Comscore. Estamos atrás apenas dos Estados Unidos, que registra 215 milhões de visitantes únicos.
Esses números mostram claramente que o consumo esportivo já não está restrito a estádios ou transmissões de TV. Ele migrou para o digital, para o móvel, para o instantâneo. O torcedor não desapareceu: ele se liquefez. Transformou-se em um ser fluido, adaptável, movido por narrativa, celular, clipe e contexto.
No plano global, o relatório Sports Industry Outlook, da Deloitte, em 2025, ressaltou que as organizações esportivas devem competir não apenas em campo, mas pela atenção de uma base de fãs dispersa, multiplataforma e acostumada a consumir esporte fora da lógica tradicional de transmissão ou presença física. A lógica é clara. Comportamentos, tecnologia e economia da atenção convergem para o mesmo ponto de ruptura: 2026.
O futuro está logo ali (mesmo)
O ano que vem marca uma tempestade perfeita: Copa do Mundo expandida, atenção mais fragmentada, colapso definitivo dos grandes contratos lineares de TV, TikTok consolidado como canal principal de descoberta esportiva da Geração Alpha. A partir desse ponto de inflexão, quem ainda acreditar que torcida se “herda” e se mantém por inércia enfrentará um choque cultural e financeiro.
A seguir, apresento três forças que já estão desmantelando o modelo tradicional e que definirão o novo ciclo do esporte a partir do novo ano.
1. Da lealdade herdada às bases de fãs nômades
As bases de fãs modernas não migram no ritmo que os clubes imaginam. Elas evaporam de um contexto e se recondensam em outro, em que a narrativa faz mais sentido. É a lógica do torcedor líquido em ação: menos geografia, menos herança familiar, mais história, mais estética, mais momento.
E isso não é teoria. É comportamento observado.
A Deloitte Digital Media Trends Survey 2025 mostra que um terço da Geração Z não assina serviços de streaming para esportes porque prefere clipes e melhores momentos (highlights) nas redes sociais, priorizando plataformas e criadores que entregam recortes rápidos da experiência, em vez de transmissões longas ou laços eternos com clubes. O Sports Industry Outlook 2025, também da Deloitte, reforça que o engajamento das novas gerações é episódico: mais de 90% dos pertencentes à Geração Z e aos Millennials consomem conteúdo esportivo via mídia social, dependendo de performance, narrativas fora dos campeonatos ao vivo (“off-season”), como documentários que 40% deles querem ver mais, e da capacidade do clube ou do atleta de se manter relevante no feed, não da tradição centenária.
A lógica do “Lifetime Value” (LTV), métrica que estima o valor total que um cliente gera para uma empresa ao longo do relacionamento, baseado na paixão incondicional está sendo desafiada por um modelo de engajamento via storytelling e ídolos.
O novo fã, especialmente o abaixo dos 30 anos, não orbita mais instituições perenes com a mesma gravidade. Os dados do Nielsen Global Sports Report 2025 confirmam essa tendência global: o crescimento de fãs jovens e diversos em esportes como o futebol nos EUA (76% Geração Z ou Millennials) e o boom dos esportes de nicho impulsionado por atletas individuais.
O exemplo da jogadora de rugby norte-americana Ilona Maher durante as Olimpíadas de Paris 2024 é a prova definitiva desse fenômeno. O crescimento dela no Instagram foi explosivo, superando a marca de 236% durante o evento. Maher saltou de cerca de 628 mil seguidores para mais de 2,1 milhões, tornando-se a jogadora de rugby mais seguida do planeta. O motor desse crescimento não foi apenas a inédita medalha de bronze, mas sua capacidade de criar uma narrativa autêntica de bastidores na Vila Olímpica, misturando humor estilo “reality show” e positividade corporal. Isso demonstra que o acompanhamento de personalidades carismáticas explode a taxas exponencialmente maiores que o de equipes ou ligas entre o público jovem.
Mais profunda ainda é a mudança no ritual de consumo, que explica a natureza nômade desse fã. O modelo de transmissão tradicional, o jogo linear de 90 minutos na TV, está morrendo para as novas gerações. Pesquisas consolidadas da Morning Consult (até 2023/2024) mostram que apenas 58% da Geração Z assiste a esportes ao vivo do início ao fim, com 42% optando por formatos não lineares como recortes e clipes curtos, e mais de 60% (incluindo 23% que preferem explicitamente melhores momentos) tratando o esporte como snack, não maratona.
A análise é clara e cruel para os tradicionalistas: o ritual de se sentar no sofá por duas horas para ver um 0 a 0 tático está sendo substituído pelo consumo frenético de clipes de 30 segundos otimizados no TikTok. O torcedor não abandonou o futebol; ele apenas otimizou seu tempo para consumir só a parte mais emocionante da narrativa. A pergunta estratégica deixa de ser “como fidelizar para sempre?” e passa a ser “como manter minha narrativa relevante o suficiente nos 30 segundos que ele me dará hoje?”.
2. O clube como ecossistema de mídia (ou a irrelevância programada)
A organização esportiva que insistir em operar com a mentalidade de apenas um “time”, uma entidade que ganha vida apenas durante o horário do jogo, está assinando sua própria obsolescência. Em 2026, quem oferecer apenas a partida ao vivo se tornará um coadjuvante dentro da própria arena, servindo apenas como pano de fundo para a segunda tela do torcedor.
Para sobreviver na guerra brutal pelo “share” de atenção, a organização precisa deixar de ser apenas uma agremiação esportiva e passar a operar como uma plataforma de entretenimento total. O concorrente do domingo à tarde não é o time rival; é a nova temporada de uma série na Netflix, o lançamento de um jogo AAA no console ou o algoritmo viciante do TikTok.
As ligas americanas e conglomerados globais já entenderam essa dinâmica e operam como estúdios de conteúdo há anos. Eis alguns exemplos:
A revolução narrativa da F1
A Fórmula 1 é o exemplo definitivo de como uma liga técnica e relativamente nichada em alguns mercados explodiu ao se transformar em novela da vida real com “Drive to Survive”. Entre 2023 e 2024, a F1 bateu recorde de público, com mais de 6,5 milhões de pessoas nos autódromos em 2024, alta de 9% sobre 2023, e US$ 2,04 bilhões em receitas de patrocínios dos times, muito puxada pela chegada de fãs mais jovens e pela série da Netflix. Nos Estados Unidos, a base de fãs cresceu 10,5% em um ano, com os GPs de Miami e Las Vegas se consolidando como eventos de cultura pop, não só esportivos.
A F1 entendeu que a corrida de domingo é só o clímax de uma narrativa construída todos os dias nas redes sociais, bastidores, treinos, paddock e conteúdo sob demanda. Hoje, milhões de novos fãs conhecem pilotos, treinos e dramas, sem necessariamente assistir a todas as voltas ao vivo.
A maquinaria da NFL
A NFL não vende apenas jogos; vende um calendário anual de eventos de mídia. O Draft, que poderia ser uma simples reunião de seleções, virou um show de três dias. Em 2025, o evento teve média de 7,5 milhões de espectadores por dia, tornando-se o segundo Draft mais assistido da história, e atraiu mais de 600 mil pessoas presencialmente, repetindo a escala de grandes festivais.
Com a NFL Network, a NFL Films e uma estrutura própria de produção, a liga controla a narrativa o ano inteiro. O “off-season” virou um produto tão relevante quanto a temporada regular. O jogo de domingo é só mais um episódio da série.
A NBA e a cultura dos melhores momentos
A NBA foi pioneira em abraçar a fragmentação da mídia. Em vez de brigar com clipes nas redes sociais, ela empurrou o jogo para dentro do feed. Em 2024, a liga praticamente dobrou as impressões sociais em relação à MLB, gerou cerca de duas vezes mais engajamento que a NFL e oito vezes mais que a NHL, consolidando uma base digital de mais de 2 bilhões de seguidores quando são somadas todas as contas da liga, dos times e dos jogadores.
O próprio comissário Adam Silver admitiu em 2025 que a NBA se tornou um “esporte baseado em melhores momentos”, com jovens acompanhando jogadores no Instagram e no TikTok em vez de assistir a jogos inteiros. Hoje, podcasts de jogadores, canais oficiais de melhores momentos e perfis de criadores de conteúdo no YouTube e no TikTok são tão centrais para o ecossistema da liga quanto a transmissão linear na ESPN ou na TNT. São eles que mantêm a conversa cultural acesa o tempo todo.
Os conglomerados do futebol
No futebol, o City Football Group (CFG) e a Red Bull deixaram de ser clubes para se tornarem máquinas industriais de cultura. Eles não administram só elencos; administram ecossistemas inteiros de produção, distribuição e monetização de narrativa.
O City Football Group é o caso mais didático dessa virada. Não é uma holding de times; é uma empresa global de mídia que opera por meio do futebol. O grupo produz documentários para grandes plataformas, como “Together: Treble Winners” na Netflix, mantém um canal no YouTube com mais de 8 milhões de inscritos, investe em e-Sports, cria coleções próprias de roupas e até entrou no mercado cripto com o $City token, que movimentou milhões entre 2021 e 2023.
Nada disso depende do placar de sábado; depende da capacidade de manter a marca viva no feed, no streaming, na cultura e no imaginário coletivo.
A Red Bull segue a mesma cartilha. Constrói arenas, promove eventos extremos, forma atletas, compra equipes em diferentes continentes, opera canais próprios e transforma jogadores em personagens globais. O futebol é só uma parte do ecossistema. A engrenagem principal é o conteúdo. A Red Bull entendeu antes de quase todo mundo que a lealdade moderna nasce da história contada, não do campeonato vencido.
Esses conglomerados não disputam apenas títulos. Disputam atenção. E atenção não pertence ao time mais antigo nem ao estádio mais cheio. Pertence a quem consegue se tornar presença diária, mesmo quando ninguém está olhando para o placar.
No Brasil, o despertar para essa realidade é desigual, mas os líderes já colhem frutos. O Flamengo consolidou uma máquina comercial em que receitas advindas de exploração de marca, ativos digitais, conteúdo próprio (FlaTV+) e licenciamentos já rivalizam em importância com as cotas de TV tradicionais , superando, em muitos casos, o faturamento total com patrocínio máster de competidores da Série B e também da Série A.
A equação para a segunda metade da década é simples e implacável: a organização que não se transformar em uma empresa de mídia competente, capaz de contar suas próprias histórias independentemente do resultado no campo ou na quadra, deixará de ser protagonista.
Quem não virar mídia, virará ruído.
3. Ritual sobre assinatura: O fim do sócio transacional
Planos de sócio-torcedor baseados na velha tríade “desconto, prioridade e carteirinha de plástico” viraram commodity. Em um mercado saturado de opções, esse modelo transacional não segura mais ninguém, especialmente o “torcedor líquido”, que flui para onde encontra sentido e pertencimento, não apenas para onde ganha meia-entrada.
O que retém o torcedor moderno, bombardeado por opções de entretenimento, não é a economia de alguns reais; é o ritual e o senso de pertencimento. É o momento que o faz sentir parte de algo maior do que 90 minutos de bola rolando.
Os dados mais recentes são um tapa na cara do modelo antigo. O caso do Palmeiras é emblemático: após um período de estagnação em torno de 70 mil sócios, o programa Avanti explodiu para a marca histórica de quase 200 mil sócios em 2025, um crescimento de 44% no último ano.
O segredo? Não foram apenas os títulos, mas a transformação do “ser Avanti” em um ritual de identidade, ancorado em experiências como o Allianz Parque lotado, a segurança da biometria facial e a integração com o banco digital Palmeiras Pay, que transformou o pagamento em uma ponte diária para a tribo, não apenas em um boleto mensal. Títulos ajudam a atrair, mas é o ritual que constrói a lealdade que não derrete na primeira derrota.
Do mesmo modo a Nação Rubro-Negra, do Flamengo, reformulou seu programa em abril de 2025 e viu um crescimento impressionante: de 77.577 sócios adimplentes no final de 2024, saltou para cerca de 100 mil em julho de 2025, um aumento de quase 30% em poucos meses, mesmo com uma temporada de altos e baixos até aquele momento.
O segredo? Planos acessíveis como o “Nação Sem Fronteiras” (R$ 19,81 por mês para torcedores de fora do Rio de Janeiro), que transformam a adesão em ritual diário via cashback, descontos exclusivos e experiências virtuais na FlaTV+, e que tornaram o clube carioca uma presença constante na vida do fã, independentemente do placar. É esse culto remoto e coletivo que cola o torcedor na camisa, muito mais do que o desconto no ingresso.
A psicologia do novo torcedor/consumidor é clara, e os números do mercado de streaming provam isso.
O consumidor cancela Netflix, Disney+ e Premiere sem piscar. Para ele, são apenas pixels e uma linha no extrato do cartão. E é capaz de cancelar planos de sócio-torcedor agora no fim do ano, quando presos à ideia de pagar menos por jogo. Mas cancelar um ritual que define quem você é, que lhe conecta à sua comunidade e à sua história? Dói na alma. É como abandonar a família no meio da festa de Natal.
A Deloitte Sports Industry Outlook 2025 sacramenta essa visão: o engajamento em esportes cresce três vezes mais quando ancorado em experiências rituais e comunitárias (como pré-jogos ou conteúdos que constroem identidade) em comparação com modelos puramente transacionais. Rituais geram lealdade emocional, enquanto assinaturas geram apenas uma cobrança recorrente. Sem o componente do ritual, o clube vira apenas mais uma notificação no celular: “Renove agora ou perca 10%”. E esse tipo de notificação ninguém lê duas vezes.
Em 2026, a regra é clara: assinaturas são descartáveis; rituais são eternos. Quem não entender isso verá a base de torcedores escapar pelo botão de cancelamento do app.
O artigo acima reflete a opinião do colunista e não necessariamente a da Máquina do Esporte
Fernando Fleury é CEO da Armatore Market+Science, PhD em Comportamento do Consumo e trabalha com inovação e tecnologia para criar novos modelos de negócios para a indústria com a construção de soluções avançadas e modelos preditivos usando inteligência artificial, aprendizado de máquina e ciência de dados para entender o ciclo de vida dos produtos, criar novos produtos e identificar e rastrear clusters a fim de aumentar a receita, o público e o envolvimento dos fãs
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Lógica do torcedor líquido entrará em ação de vez no ano que vem: menos geografia, menos herança familiar, mais história, mais estética, mais momento
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