Dia da Consciência Negra: o racismo do passado e do presente no futebol brasileiro

“A escolha de jogadores brasileiros para os encontros internacionais andou por algum tempo obedecendo ao mesmo critério: nada de pretos, nem de mulatos chapados. Só brancos. Ou então mulatos tão claros que parecessem brancos.” Já em 1940 Gilberto Freyre denunciava o, até então, “passado racista” do esporte brasileiro. Ter pele clara foi, durante muitos anos, uma característica fundamental para participar de agremiações esportivas. Atualmente, por vezes, acreditamos que esse cenário mudou, mas os contemporâneos casos de racismo no esporte nacional revelam que, na verdade, a demonstração de racismo só se transformou.

O passado racista: as primeiras aparições do negro no futebol

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Para Marcelo Carvalho, Diretor Executivo do Observatório da Discriminação Racial no Futebol, a inserção de atletas pretos foi “um processo muito voltado para a questão comercial.” Ao enxergarem que os atletas negros também eram habilidosos, os clubes passaram a desejá-los, mas “isso foi comercial, nunca foi na luta contra o racismo”, afirma o diretor. Até mesmo essa entrada foi marcada pela exclusão, pois uma vez que o negro pôde jogar, ele entrava e saía pela “porta dos fundos”: “Essa inserção nunca foi pensada para combater o racismo. Eles toleravam porque dava dinheiro ou título.”


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Historicamente, o primeiro clube fundado com a participação de um negro foi a Ponte Preta, em 1900, com Miguel do Carmo. Ele não só fundou o clube, como foi o primeiro a ser escalado para uma partida de futebol, como consta em ata publicada no mesmo ano de fundação. O Bangu também está entre os clubes pioneiros na inserção de pretos no futebol, já que era formado em grande parte por operários da Fábrica de Tecidos Bangu, de maioria negros, e chegou a abandonar a principal liga da época, a Liga Metropolitana de Football, já que o registro de “pessoas de cor” foi proibido.

Além disso, o Vasco também teve participação importante nesse processo ao criar uma liga de futebol em 1924, a Associação Metropolitana de Esportes Atléticos (AMEA), para que não precisasse demitir seus 12 atletas negros, já que a nova liga criada Fluminense, Flamengo, Botafogo e outros clubes determinava a exclusão de pessoas pretas. O Vasco foi intimado a afastar seus jogadores “de cor”, mas recusou-se e disputou uma liga separada dos principais clubes do Rio de Janeiro.

Estudei lá (no Vasco) por 5 anos. É mostrada toda a história do clube pra gente e conseguimos enxergar que sempre foi um clube que lutou pelo direito de todos, principalmente quando os negros não podiam jogar futebol e eles tentaram fazer outra liga pra poder mudar essa regra”, disse o atacante Paulinho, formado nas categorias de base do Vasco da Gama, atualmente no Bayer Leverkusen, da Alemanha.



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Paulinho é cria do Vasco | Thiago Ribeiro/Gazeta Press/Agif Jornal argentino “Crítica” faz charge retratando jogadores brasileiros como macacos Marinho foi campeão da Libertadores com o Flamengo | Arthur Miranda/Pera Photo Press/Gazeta Press Vini Jr. foi alvo de racismo na Espanha. | Getty Images

A seleção brasileira

Ao vencer a Sul-Americana em 1919, a seleção brasileira foi a primeira do mundo a conquistar um título com jogadores negros. Mas isso não significava que os atletas pretos ali presentes estavam, de fato, inseridos em uma sociedade engajada com a luta antirracista. Pelo contrário, “historicamente a sociedade brasileira nunca quis ouvir o que jogadores de futebol queriam dizer. O Brasil sempre apagou da história personagens que queriam falar. Tivemos exemplos ao longo da história, como gentil Cardozo, que foi demitido”, relembrou Marcelo Carvalho.

Jornal argentino “Crítica” faz charge retratando jogadores brasileiros como macacos Marinho foi campeão da Libertadores com o Flamengo | Arthur Miranda/Pera Photo Press/Gazeta Press Vini Jr. foi alvo de racismo na Espanha. | Getty Images

Mas nem mesmo a vitória em 1919 seria suficiente para conter o racismo que a Seleção sofreria no ano seguinte, por causa da derrota. Na Sul-Americana de 1920, perdeu por 6 a 0 para o Uruguai e, antes de retornar ao Brasil, passou na Argentina, por onde foi recebida com uma charge racista em que os brasileiros eram retratados como macacos, publicada pelo jornal Crítica. No ano seguinte, o presidente da república, Epitácio Pessoa, sugeriu a não-convocação de jogadores negros para a Seleção, com o argumento de que era para preservar a imagem do país.

“O presidente então determina que não convoque jogadores negros para que o mundo visse o Brasil como um país mais branco. A gente passa em 58, quando o psicólogo determina que negros não deviam ser convocados pois não suportam a pressão. A gente sempre vê essa roda girando apontando os negros como o elo mais fraco. Principalmente quando a Seleção perde um título”, comenta Marcelo.

O futebol tolera jogadores negros, não aceita.”

“O negro é bom de bola”

Ao contrário do que muitos pensam, o negro não é bom de bola. O negro é muito bom de bola! Mas vale ressaltar, o negro não serve apenas quando está fazendo gol pelo seu time.

Pelé não é só o melhor de futebol de todos os tempos, como também é preto. Michael Jordan, Lewis Hamilton, Muhammad Ali, Lebron James, Anderson Silva, Rebeca de Andrade, Simone Biles e Usain Bolt são alguns esportistas pretos que entraram para a história.

Além do Rei do futebol, o Brasil fabricou diversos talentos de pele preta, Ronaldinho, Rivaldo, Leônidas da Silva, Barbosa, Garrincha, Didi, Jairzinho, Romário, Neymar, Vinicius Jr, entre outros tantos. O talento do povo preto não é uma exceção no futebol.

Bom de bola, ousado, alegre, o negro é tolerado no esporte, e em outras tantas esferas da sociedade, porque ele é bom e ganha títulos.

Marinho, atacante do Flamengo, é mais um “negro bom de bola”. O atacante é multicampeão pelo time carioca, e um dos principais jogadores a apoiar a luta anti racista no futebol brasileiro. O Rubro-Negro é o time de maior torcida no Brasil, clube que é historicamente marcado por ser um time do povo, hoje é inspiração para tantas crianças. Dentro de todo esse contexto, o atacante entende que é um influenciador e espelho para muitas pessoas pretas:

E essa é a melhor parte, poder sempre fazer o meu melhor, ser uma pessoa conhecida e ser sempre exemplo para outras pessoas, para outras crianças negras, de me olharem e falarem: “Um dia quero estar onde ele está”, como um dia eu olhei pro Romário, olhei pro Pelé. E hoje eu esotu vivendo um momento em um clube que tem tantos negros que abraçaram o Flamengo, que vivem o Flamengo, eu acho que isso é um valor que eu tenho e que vivo diariamente, quando eu vejo a nação flamenguista, eu sempre me enxergo no meio deles.”

Marinho foi campeão da Libertadores com o Flamengo | Arthur Miranda/Pera Photo Press/Gazeta Press Vini Jr. foi alvo de racismo na Espanha. | Getty Images

Sofrendo e lutando contra o racismo desde sua infância, Paulinho também é um expoente marcante dentre os brasileiros que se posicionam contra o racismo. O jogador não é um negro retinto e possui a pele clara, o que não impediu que sofresse com casos de discriminação quando ainda era pequeno.

E sempre fui muito zuado na escola, as pessoas falavam “tu é branco de cabelo duro?”, mas sempre me reconheci como homem preto e tenho muito orgulho disso.

Hoje defendendo o Leverkusen, time da primeira divisão da Alemanha, Paulinho ainda sofre discriminações.

“Na Alemanha você consegue perceber que é estrutural. Você consegue ver ainda no olhar uma parada meio estrutural, meio cultural, mas não é tão agressivo como é no brasil, eu consigo lembrar algumas situações com meu pai, a gente entrando em restaurante, as pessoas olhando estranho, porque ele era o único de cabelo afro. As pessoas também ficam olhando muito pro cabelo da minha mãe quando ela chega nos lugares, porque não é uma coisa comum lá, mas não lembro de ter visto algo agressivo como a gente vê aqui no Brasil não.”

Hoje, o esporte mais popular do mundo e praticado em todos os cantos do Brasil, nem sempre foi um espaço de livre acesso para os negros. Mesmo que inventado e popularizado por operários de fábricas na Inglaterra, o futebol chegou ao Brasil como um esporte da elite, pessoas de classe alta, brancos.

Quando aparecia a oportunidade de jogar, tinham que ser ligeiros, rápidos e malandros para fugirem das agressões. Divididas fortes e maldosas, como se quisessem mostrar que esse espaço não era para os pretos.

Mas se o brasileiro não desiste nunca, não seria o povo preto que quebraria essa tradição.

Anos diferentes, mesmo alvo: o racismo no futebol nos dias atuais

Como já citado anteriormente, Ponte Preta, Bangu e Vasco foram pioneiros na luta contra o preconceito. O Cruzmaltino foi um dos primeiros clubes no Brasil a incluir os negros no time, tornando-se também um dos mais vencedores naquela época.

O maior nome do esporte no Brasil até hoje é Pelé, um negro, tricampeão mundial com a Seleção Brasileira e que é considerado o Rei do futebol. Ainda assim, o racismo persiste nos dias atuais.

Só em 2021, de acordo com o Observatório da Discriminação Racial no Futebol, houve 158 casos de racismo no futebol brasileiro. O número bateu recorde de casos de preconceito no Brasil em um levantamento que é feito anualmente desde 2014. Em 2019, também foram 158 ocorrências, iguais aos números do ano passado.

 Marcelo Oliveira, Diretor Executivo do Observatório Racial do Futebol afirmou que a culpa não é somente do futebol, mas da sociedade como um todo:

“Enquanto a gente viver em uma sociedade tão racista como é a nossa, a gente não vai ter o fim do racismo no futebol e o fim do racismo na sociedade.”

Não é raro encontrar casos de racismo na sociedade e no futebol nos dias de hoje. Na edição de 2022 da Libertadores e da Sul-Americana, por exemplo, tivemos casos que ultrapassaram o Brasil. Torcedores argentinos e chilenos também insultaram brasileiros. As punições, entretanto, foram brandas. Na Europa, Vini Jr. foi alvo por sua dança e irreverência em campo, mas não deixou de bailar para nos mostrar que o preconceito se combate com um sorriso no rosto.

Vini Jr. foi alvo de racismo na Espanha. | Getty Images

Casos recentes escancaram o preconceito no futebol atual

Na sexta-feira (18), outro caso veio à tona, este fora das quatro linhas. Um jogador de futebol, negro, foi agredido por um motorista de aplicativo enquanto saia ao encontro de amigos. A “justificativa” do motorista foi de ter confundido uma garrafa de bebida alcoólica com uma arma. Carlos Eduardo, de 18 anos, foi mais uma vítima do preconceito contra a cor em um sistema que não poupa nem mesmo pessoas públicas.

Marinho, atualmente jogador do Flamengo, também conversou com a TNT Sports Brasil e revelou que já sofreu racismo dentro de campo. Além disso, o atacante afirmou que já sentiu na pele o preconceito quando entra em lugares e visto com olhares diferentes, de apontamentos, acusações e preconceito.

“Eu já era uma pessoa conhecida e o que mais me doeu é ver que você atinge um patamar de reconhecimento dentro do cenário brasileiro no futebol e passa por situações como essa (de racismo). Eu fiquei muito mal sempre pensando nas pessoas que passam por isso diariamente e não têm voz. Quando isso aconteceu comigo, eu fiquei muito mal. As pessoas tentam te ferir e infelizmente elas conseguem. Às vezes eu lembrava e eu chorava.”

“Houve um caso em Santos, eu tinha acabado de marcar um gol e após uns dez minutos, a gente estava se classificando, eu fui expulso e o Santos tomou a virada. Quando eu estava saindo do campo, um chef de cozinha que estava comentando o jogo como convidado da rádio falou que eu tinha que voltar para a senzala pra aprender que o que eu tinha feito era errado. Aí me pergunto: até quando vamos viver com isso? em um país que é muito racista, não estamos preparados para essa conversa.”

É preciso entender que o racismo vai além do valor que você tem na conta bancária ou até mesmo se você é conhecido ou não. Até por isso é preciso falar sobre o racismo, combater o racismo e lutar contra o racismo independente da sua classe social e posição que ocupa na sociedade.

A Seleção Brasileira inicia a trajetória em busca do hexa no Qatar com 17 atletas negros. Ainda assim, tivemos 158 casos de racismo no futebol brasileiro no último ano, segundo o Observatório da Discriminação Racial do Futebol. A conta não fecha. A Copa do Mundo no Qatar começa justamente no dia da Consciência Negra, o que tem um simbolismo para refletirmos a importância da inserção do negro neste cenário de futebol mundial.

“Eu olho pro Brasil hoje e vejo que a gente está representado no esporte principalmente, você vê que a maioria dos atletas de sucesso, de ponta brasileiros são negros, e eu acho que isso é uma bela representatividade da nossa força.”, afirmou Paulinho, atacante do Bayer Leverkusen.

Precisamos parar e refletir e entender que nossos “Pelés”, “Vinis Jrs.”, “Marinhos”, “Paulinhos” e outros jovens negros têm dores, tristezas, alegrias e principalmente sonhos tanto quanto outros jovens brancos, mas muitas vezes não têm as mesmas oportunidades.

Não é sobre querer privilégios, é sobre querer igualdade. É sobre respeito!


 

Nesta reportagem especial, a TNT Sports conversou com os atletas Paulinho (Bayer Leverkusen) e Marinho (Flamengo), e também com o especialista Marcelo Carvalho, diretor executivo do Observatório Racial no Futebol, para analisar não somente a inserção do negro no futebol nacional, como também o racismo no esporte atual

“A escolha de jogadores brasileiros para os encontros internacionais andou por algum tempo obedecendo ao mesmo critério: nada de pretos, nem de mulatos chapados. Só brancos. Ou…  

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