Lançada recentemente na Netflix, a série “Os Donos do Jogo” trouxe reflexões importantes sobre a indústria de jogos do Brasil. Em oito episódios, a produção recontou – de forma ficcional, mas inspirada em história real – a trajetória de bicheiros no Rio de Janeiro e os bastidores de uma das atividades ilegais mais tradicionais do país.
Profeta, interpretado por André Lamoglia, sonha em comandar 300 salas de jogos e se tornar um dos maiores bicheiros da região. Para concretizar seus planos e seguir os passos do pai adotivo, Profeta se une a Mirna, jovem milionária vivida por Mel Maia, filha de um dos chefes da atividade, que também busca consolidar o próprio poder.
A série retrata a realidade da estrutura ilegal do jogo do bicho no Brasil, especialmente no Rio, mostrando como organizações criminosas controlam pontos de aposta, movimentam esquemas de lavagem de dinheiro e eliminam rivais que tentam interferir nos negócios.
Mas, afinal, o que essa narrativa ficcional tem a ver com a atual indústria de jogos e apostas do Brasil? E quais lições podem ser extraídas da nova produção da Netflix?
Semelhanças entre os dois mundos
Enquanto o jogo do bicho é ilegal no país, as apostas esportivas e os jogos online foram regulamentados, tornando-se um mercado legal e em conformidade com a legislação brasileira vigente em 1º de janeiro deste ano.
A atividade teria surgido em 1892, no próprio Rio de Janeiro, sendo, atualmente, associada a grupos criminosos e a atividades fraudulentas. As apostas do jogo do bicho são feitas em bancas informais e não contam com fiscalização governamental – diferente do mercado regulamentado das apostas online.
Embora a prática seja muito semelhante – apostas, sorte e prêmios -, os bastidores da indústria do jogo do bicho são uma realidade completamente diferente da que estamos vivendo atualmente com o mercado regulamentado. Ainda assim, é preciso considerar que o Brasil possui um forte setor ilegal de apostas online, que prejudica diretamente o desenvolvimento saudável desse ecossistema.
De forma sutil, mas precisa, “Os Donos do Jogo” expõe como se entrelaçam as relações entre parlamentares, empresários e organizações criminosas. A série cria situações que lembram a dinâmica real do jogo ilegal no país.
Meu passado me condena
Um jogador recém-chegado à Série A do Campeonato Brasileiro é ameaçado após recusar participar da inauguração do bingo de Profeta, seu “amigo de infância”.
“Tu não entendeu, Maestro. Eu não to pedindo para o jogador da Série A, to pedindo para o meu parceiro de Campos que me pedia chuteira velha para jogar, lembra? […] Sacanagem é se descobrem que antigamente tu levava uns cartões amarelo para tirar um dinheiro por fora, lembra? Em 10 bets [casas de apostas] diferentes”, pressionou o Profeta.
O poder do dinheiro
Laurent (Fabien Caleyre), empresário francês, aproxima-se de um deputado em busca de apoio político para acelerar a legalização dos cassinos no Brasil.
“Jogos de azar, deputado. Vocês têm tanto orgulho da sua indústria ilegal que não querem pensar em entrada de capital estrangeiro independente quando legalizarem?”, questionou o empresário.
O parlamentar riu, indagando por que “gringos” chegam ao Brasil com dinheiro acreditando que detêm poder de controle: “A gente não precisa sair daqui, do Rio, para saber quem é que manda e o que eles fazem com quem peita eles, entendeu?”.
Como resposta, o francês adotou outro caminho – e com tom levemente ameaçador. Laurent destacou as diferenças culturais entre crianças brasileiras e francesas, mencionando a jovem sobrinha do deputado, deixando-o visivelmente desconfortável.
Búfalo: rede de poder
Um dos personagens que mais evidenciam essa rede de poder na primeira temporada de “Os Donos do Jogo” é Búfalo, interpretado por Xamã, que atua como ponte entre o crime organizado e o controle territorial das operações. Na série, Búfalo representa o elo entre a violência, a coerção e os negócios ilegais.
A série reforçou que, na ausência de regulamentação e de fiscalização eficaz, estruturas paralelas tendem a ocupar o espaço deixado pelo Estado.
A inspiração por trás da série da Netflix
Embora fictícia, a série da Netflix foi inspirada no documentário “Vale o Escrito – A Guerra do Jogo do Bicho”, da Globoplay. A minissérie brasileira retrata o ecossistema do jogo do bicho no Rio de Janeiro, incluindo disputas por territórios, confrontos familiares, mortes e o Carnaval.
As irmãs Guerra de “Os Donos do Jogo” foram inspiradas em Tamara e Shanna Garcia, filhas do bicheiro Maninho Garcia. Depois de ser assassinado em 2004, iniciou-se uma disputa pela sucessão marcada por violência e atentados entre herdeiros e rivais.
Ao longo dos anos, a cúpula do jogo do bicho registrou outras mortes e conflitos envolvendo famílias, evidenciando que, por trás de uma tradição popular, existe uma estrutura paralela de poder e de criminalidade.
A série “Os Donos do Jogo” dramatiza esses acontecimentos, mostrando como disputas pelo controle do jogo se entrelaçam com cultura, heranças e violência no submundo das apostas ilegais.
Especialista analisa “Os Donos do Jogo”
Com quase dez anos de experiência na indústria, Isadora Marcante, gerente de Relacionamentos para o Brasil da SBC, destacou os principais ensinamentos da série.
“Os Donos do Jogo” traz à tona um ponto central do debate sobre a legalização dos jogos de cassino no Brasil: trata-se de uma atividade que acompanha o país há mais de um século. O jogo do bicho, origem moderna desse mercado, surgiu no Rio de Janeiro em 1892, criado por João Batista Viana Drummond, proprietário do Jardim Zoológico de Vila Isabel. Com autorização do poder público, Drummond organizava sorteios diários dentro do zoológico para atrair público e garantir a sobrevivência financeira do parque. A iniciativa rapidamente extrapolou os muros do local, ainda existindo ampla e, pode-se dizer, livremente – mesmo sem ser legalizada.
Crédito: LinkedIn
A trajetória do jogo do bicho mostra como uma atividade originalmente legal e popular se tornou informal e, posteriormente, capturada por organizações criminosas. A falta de legislação, de fiscalização e de suporte institucional abriu espaço para que um mercado de grande circulação financeira migrasse para a clandestinidade – repetindo um padrão que se observa ainda hoje, com o advento das máquinas caça-níqueis e dos bingos físicos.
É visível, portanto, que a proibição atual apenas perpetua o problema. Ao manter os cassinos físicos fora da legalidade, o Estado entrega a uma economia paralela uma atividade altamente lucrativa que dificulta o controle, a transparência e a segurança para empresas e consumidores.
Além disso, um ambiente legalizado cria mecanismos de proteção ao jogador. Em um ambiente clandestino, não há a quem recorrer em caso de prejuízo indevido, golpe ou abuso. Com a legalização, criam-se canais formais de denúncia, padrões de segurança, auditorias frequentes, fiscalização constante e responsabilização das operações.
O impacto econômico é outro fator determinante. A formalização gera empregos, estimula setores como hotelaria, entretenimento, tecnologia e serviços, e fomenta a economia local. Cassinos integrados a resorts e em embarcações atraem turistas e novos investimentos, contribuindo para a modernização das cidades, para a revitalização de áreas urbanas e para a destinação de verbas a diferentes segmentos da sociedade.
Em adição, apenas um setor regulado permite a implementação de políticas efetivas de jogo responsável. Na ilegalidade, a ludopatia é invisível, e aqueles que precisam de cuidados e de auxílio são desassistidos. Com regras claras, programas de prevenção, certos limites operacionais e suporte especializado, há condições reais para identificar riscos e oferecer ajuda a quem enfrenta dependência.
No conjunto, o debate aponta para uma conclusão recorrente no setor: manter o jogo na ilegalidade apenas fortalece quem opera fora da lei.
Lançada recentemente na Netflix, a série “Os Donos do Jogo” trouxe reflexões importantes sobre a indústria de jogos do Brasil. Em oito episódios, a produção recontou – de forma ficcional,
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